Catadores de Dignidade


Não importa a nossa classe social, credo ou raça... Produzimos lixo. Alguns em grande escala, outros em pequena quantidade. E, por maiores e profundos abismos que existam em nossa sociedade, é no lixão ou aterro sanitário que as nossas diferenças desaparecem. Ali, ricos e pobres, governantes e governados, traficantes e policiais, letrados e iletrados, católicos e protestantes se encontram. Ou melhor, os seus dejetos.
Dejetos para uns, oportunidade de levar a vida dignamente para outros tantos.
E é essa dignidade que o artista plástico brasileiro, Viki Muniz, vem retratar (literalmente) em seus trabalhos e no filme-documentário "Lixo Extraordinário" (2010). Centenas de pessoas acordam todas as manhãs e, como soldados excluídos da "moderna sociedade líquida" (nos dizeres de Zygmunt Bauman), marcham rumo às montanhas do que a maioria da população denomina de lixo.
Mas essas montanhas estão geograficamente localizadas em Jardim Gramacho - Duque de Caxias, RJ - e é nesse horizonte que Muniz encontrará pessoas que entre lágrimas e sorrisos abrirão as portas de seu coração e contarão as histórias de suas vidas. O documentário permite-nos ouvir relatos tão marcantes, de pessoas sofridas e batalhadoras, que escolheram trabalhar no aterro, não por falta de opção, mas porque dentre as opções que a sociedade moderna excludente dá aos que vivem às suas margens, esta era uma das melhores. E como disse uma das entrevistadas e que serviu de modelo para um dos quadros de Muniz: "É melhor do que tá rodando bolsinha". É mais digno e humano, sim, pois o lixo não desumaniza ninguém.O que rouba a nossa humanidade é viver às margens de uma sociedade que nos trata da mesma maneira com que trata os seus dejetos. Pretende-se empurrá-los para lugares cada vez mais distantes e marginalizados, onde alguém fará alguma coisa com eles. E é dessa forma que eu vejo: nos dias de coleta, colocamos nosso lixo da porta de casa para fora e esperamos que o caminhão de lixo o pegue e o leve para longe de nós. ,as para onde vai esse lixo? Poucos se importam ou mesmo se questionam a respeito. Assim acontece com os excluídos, que são afastados dos centros urbanos e lançados às margens, onde há pouco ou nenhum acesso ao lazer, à educação, à saúde, enfim, às necessidades básicas de nossa humanidade. Dessa forma, prédios imensos e condomínios luxuosos roubam pouco a pouco os espaços das favelas e casebres, que passam a ser construídos em algum lugar onde não possam atrapalhar a vida daquelas outras pessoas que se acham tão superiores. Para ilustrar isso, temos as inúmeras desapropriações, as quais o governo deu início para alargar avenidas e reformar estádios para a Copa do Mundo, sendo que, no Brasil, esta copa é para as minorias, que tem condições financeiras para pagar os exorbitantes preços dos ingressos. E, mais uma vez, são poucos os que se importam ou questionam para onde vão essas pessoas, ou mesmo se têm algum lugar para ir.
No documentário, percebo algo interessante e que, de tão complexo, soa alarmante. Lixo não é só uma questão de ter um local específico onde depositá-lo. Mas, também, diz respeito ao que fazer com ele; às pessoas que retiram dele a sua sobrevivência; à educação ambiental da população consumista; respeito e dignidade humanos; políticas públicas; saúde; impactos ambientais; arte; descaso governamental; consumismo; descartabilidade do ser humano e seus relacionamentos; e diz respeito também ao compromisso com a comunidade.
Ah! Diz respeito a tanta coisa e há muito mais para ser dito. São necessários inúmeros outros documentários como o de Muniz, mas é também preciso que estes documentários cheguem às mãos das pessoas certas, no momento oportuno.
Com relação ao compromisso comunitário, a esposa de Muniz, Janaína, discutia com ele, em algum momento do documentário, acerca dessa decisão dele de chegar e querer mudar a vida daquelas pessoas. Ela não estava desacreditando o trabalho de seu marido, tampouco dizendo que seu sonho era impossível, mas se colocando em uma posição que muitas pessoas que resolvem desenvolver trabalhos junto às comunidades se colocam também: é a posição de se comprometer com uma comunidade à qual não se pertence, conhecer a história das pessoas que a ela pertencem e tentar, de algum forma, promover uma ação que permita a essas pessoas se apropriarem autonomamente de suas vidas e as transformarem. É um trabalho, como o que Viki Muniz promoveu, de libertação. De dizer "Ei, pessoal, há outras possibilidades que possam dar certo", mas, ao mesmo tempo, saber dos riscos, que pode-se estar lançando sementes em terras inférteis ou que essas sementes podem até germinar mas serão sufocadas com o gosto amargo e salgado das lágrimas do sofrimento. É um trabalho de incertezas. Pode dar ótimos frutos, mas também pode não dar. E a vida é tão incrível, que dando certo ou não, a vida das pessoas envolvidas já é tocada de alguma forma. No dizer de Tião: "Tu valeu a pena!". Essa mesma discussão frequentemente a temos, nós, estudantes de Psicologia, que se vêem nesse dilema de querer fazer algo, mas tendo a consciência de estar com os pés e mãos atados, embora nossa mente seja livre para produzir criativamente formas alternativas de tornar a vida dessas pessoas menos ferida em sua dignidade.
Em alguns momentos do vídeo, senti-me profundamente envergonhada por ter tudo (e nesse tudo, incluo até mesmo o que eu não preciso, o excesso, o supérfluo, do qual a nossa líquida sociedade moderna não abre mão) e, ainda assim, reclamar da vida que tenho. Ao ver, no documentário, pessoas que sorriam apesar de suas vidas sofridas, cresce em mim a vontade ser mais e melhor por elas. E sei que, de alguma maneira, suas histórias tocaram a minha.
E compreendo, enfim, o que pretendia realmente Viki Muniz ao entrar em contato com aquela comunidade de catadores de material reciclável. Queria mostrar a todos, principalmente aos catadores, que sozinhos podem fazer muito, mas que unidos podem fazer coisas grandiosas. Viki compreendia o sentido de comunidade e que a principal e mais importante tarefa de um intermediador externo na comunidade é gerar naquelas pessoas o sentimento de solidariedade umas para com as outras e a certeza de que quando uma pessoa dá um pequeno passo, dá a abertura para que também as outras se movimentem e promovam mudanças em suas vidas.. Dessa forma, tenho certeza de que as pessoas daquelas comunidade, ao conseguirem mudar suas próprias histórias também ajudarão as outras a se reerguerem e seguirem em frente com a cabeça erguida e a humanidade intacta!
Muniz











Tião


Referências:
Filme-Documentário: Lixo Extraordinário (MUNIZ, 2010) (disponível no youtube)
BAUMAN, Z. Amor líquido e a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro, Zahar, 2004.
COSTA, L; BRANDÃO, S. Abordagem clínica no contexto comunitário: uma perspectiva integradora. Psicologia & Sociedade, 17 (2), 33-41, maio/ago, 2005.

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